terça-feira, 26 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 6ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Pelos deuses

Graças a Ferreiro, os agentes da Intempol foram bem recebidos na aldeia. Tratados como hóspedes bemvindos, eram motivo de curiosidade para todos, principalmente para as crianças. Mas tratava-se de um acontecimento especial porque um dos mais importantes “Babalossains” do Candomblé estava frente a frente com um dos mais antigos Babalaôs da história.

– Você nem imagina o quanto me sinto honrado em estar diante do Babalaô – disse Ferreiro como se fosse um veterano da Empresa e não um marinheiro de primeira viajem. Mas o tradutor era uma complicação: teimava em verter ‘Babalaô’ para ‘pai dos segredos’.

O Babalaô não parecia surpreso, apesar de Ferreiro dizer que vieram do futuro. Agia com naturalidade
irritante. Talvez simplesmente não acreditasse ou não compreendeu o que Ferreiro lhe dizia.

– Meu nome é ainda lembrado no futuro? – Indagou o sacerdote, deixando escapar uma ponta de orgulho narcisista.

– Infelizmente não – respondeu Ferreiro, demonstrando um constrangimento que não passou despercebido.

– Então muito se perdeu, não?

– Sim, Babalaô. E temo que muito ainda se perderá. Em minha época já não se conhece o nome de muitos Orixás e talvez saibam menos sobre um número ainda menor.

– Orixás? – O Babalaô indagava como se quisesse uma confirmação.

– Como serão conhecidos os “Irún-imóles” quando a guerra acabar.

– Serão? Ainda tem tanta certeza sobre o incerto?

– Para ser sincero – Ferreiro estava triste e suas palavras eram pausadas e embargadas – estou com medo. Quero acreditar que Orunmilá e Olodumare não abandonarão os homens e deixarão o futuro existir. Quando penso que posso ter vindo de lugar nenhum, sinto-me como uma farsa diante da divindade.

– Acha que podemos fazer algo? – As palavras do Babalaô tinham o tom do desafio.

Ferreiro ergueu a cabeça e retomou o porte altivo que tinha ao chegar na aldeia. Olhou nos olhos do velho e disse como se aceitasse o desafio:

– Faremos o que sabemos fazer – depois apontou para Franco, ainda deitado na esteira – com ou sem ele.

– Será que poderemos salvar o futuro?

– Nós? Talvez. A palavra final será dos deuses, mas não creio que se interessarão em ajudar quem nada faz por si.

– Então vamos lutar? – O Babalaô falava com o entusiasmo dos jovens antes da primeira caçada.

– Com as armas que temos: nossos conhecimentos. Tenho o saber das plantas sagradas ensinado aos homens pelo Orixá Ossãin e vou usar o que sei para ajudar o “élégun”, quer gostem os “Igbá-imóles” ou não.

– Orunmilá me mostra o futuro, – disse o Babalaô – mas também desvenda o passado e o presente. Por Ifá se conhece os segredos e nenhum pode ser maior do que o que ainda não aconteceu.

– Mas vai acontecer! – Chico Ferreiro teimou, cada vez com menos convicção e parecia prestes a desistir, afinal, o homem que antes lhes parecia tão poderoso estava prostrado na esteira. – Se não desistirmos em entregar nosso destino aos deuses e escolhermos o nosso caminho, eles nos honrarão com seu respeito por nós e uma Era fantástica começará.

– Então vamos começar a fazer o que tem que ser feito, afinal Ifá não previu o fim do mundo, apenas disse que nada estava definido.

Havia muito o que conversar e num canto, em silêncio, Franco se recuperava e tentava entender o que vira. Temia que Babalaô, sem a supertecnologia da Intempol, pudesse ser o único com possibilidades de ganhar a barganha.


* * *

Julian Akim preferia contemplar a planície logo abaixo a supervisionar o trabalho. Seus homens e máquinas seguiam num ritmo frenético. Somente deixou de lado a visão panorâmica quando Linterbaun se aproximou:

– General, trouxemos todas as folhas, grãos e bebidas que o senhor mandou, mas teremos dificuldade e conseguir o tal cachorro.

– Não, não terão. – Akim sentenciou. – Há cães em outra aldeia.

Linterbaun sorriu e indagou: – Então temos carta branca para agir?

– Sim, desde que fiquem bem longe daquela aldeia onde fomos. É lá que está o que procuro.

Linterbaun prestou continência, selecionou três homens e partiu. Akim voltou a admirar a planície que se estendia abaixo.

* * *

Em uma aldeia próxima de uma pequena cachoeira, dois guerreiros poliam suas lanças de madeira e sorriam apontando para o grupo de caçadores que esfolava um leopardo. O animal, muito arisco, deu um trabalho danado àqueles jovens caçadores, mas no fim triunfaram e a pele do animal serviria de adorno ao líder da caçada.

De repente, quatro homens trajando estranhas vestes que se apropriavam da cor dos objetos próximos,
surgiram como se saídos do nada, portando estranhas armas e separados uns dos outros por cerca de dois metros. Os guerreiros logo os reconheceram: eram os tais homens que traziam presentes em troca da submissão da aldeia. Eles se lembraram que seus anciãos não aceitaram a submissão e os mandaram embora – agora, sem serem convidados, estavam ali com olhares ameaçadores.

Linterbaun fez um sinal com o braço esquerdo e o grupo se aproximou da aldeia. Logo, os guerreiros deram um grito de alarme e surgiram mais uns trinta homens portando lanças de madeira, aos quais se juntaram os jovens caçadores. Antes que pudessem dizer qualquer coisa, viram riscos luminosos saírem das armas dos homens estranhos e muitos caíram em dor e agonia, morrerendo em seguida.

O líder da caçada, bravo como se esperava que fosse, ergueu o braço e arremessou a lança em direção a Linterbaun. A lança teria perfurado o ventre se o invasor não estivesse bem protegido pela a roupa especial que aparou a lança. Linterbaun fitou o agressor e sorriu, principalmente quando o caçador, longe de se dar por vencido, abaixou-se a apanhou uma pedra. Quando levantou, um disparo arrancou-lhe o braço. Ele gritou de dor e espanto, mas abaixou-se novamente para, com o braço restante, apanhar outra pedra. Linterbaun mirou e despedaçou-lhe a cabeça.

Os homens de Akim foram abrindo caminho pisando sobre os corpos despedaçados de homens, mulheres e crianças. Apenas algumas sobreviventes se agarraram aos filhos que lhes sobraram e adentraram pela mata, fugindo da morte. Fora elas, mais ninguém escapou.

Num canto, presos por cordas, estavam dois cachorros que latiam desesperados diante da destruição que se abateu sobre seus falecidos donos. Um dos soldados sorriu e apontou para os animais, depois todos ajustaram as armas e dispararam bombas incendiárias sobre as cabanas. Em breve restavam apenas cinzas.


* * *

Os anciãos chegaram esbaforidos na cabana do Babalaô e relataram que uma aldeia próxima dali foi
destruída. Seus habitantes foram mortos pelos homens estranhos que lhes haviam dado presentes com exceção de algumas mulheres que fugiram pela mata agarradas aos seus filhos pequenos e que narraram a história. Segundo elas, apenas quatro homens exterminaram quase trezentas pessoas com armas que reproduziam o som do trovão, provocando fogo e morte. Pareciam interessados somente nos cães e levaram dois com eles.

– Serão esses os verdadeiros deuses? – Indagaram os anciãos que acorreram ao Babalaô – Orunmilá respondeu que não – disse o Babalaô.

– Então quem mais realizaria tais proezas? – teimou um velho.

– São só homens como nós, mas homens maus. Nossos convidados vieram até aqui para nos proteger deles – o Babalaô apontou para Franco e os anciãos não pareciam convencidos.

– Foi você quem nos disse que Orunmilá previu a fúria dos deuses que se sentem ameaçados e que eles têm um poder de destruição nunca visto, como aqueles homens que destruíram a aldeia.

O Babalaô consultou Ifá e repetiu:

– Não são deuses, são homens maus.

– E de onde vem aquele poder?

– Dos homens. Assim como um dia aprendemos a fazer fogo, construir nossas casas e conhecemos Ifá, eles só sabem o que lhes ensinaram outros homens que vieram antes.

Os anciãos não entenderam o que quis dizer o Babalaô. Nem poderiam, pois governavam uma aldeia de caçadores, que transmitiam sua experiência de vida aos mais moços. Não são eram sábios nem sacerdotes, tampouco devotaram suas vidas ao conhecimento ou a divagação. Esse tipo de governante ainda não surgiu naquelas paragens do mundo.

Eles se retiraram respeitosamente. Um Babalaô goza do mesmo prestígio entre os iorubás que gozaria um Bispo católico na Idade Média.

– Estão com medo – reparou Ferreiro.

– Quem não estaria?

– Orunmilá disse que só teremos chances de salvar o mundo se não tivermos medo e que a salvação não vem de fora – o Babalaô olhou para Franco – mas sim de nossas cabeças.

Adebisi notou que era para ele a quem o Babalaô dirigia aquelas palavras, mas em seguida sentiu-se
sonolento e fechou os olhos. Quando abriu, estava em algum lugar onde via o homem com o corpo todo coberto por palha da costa dançando. Por onde pisava caíam búzios que cobriam todo chão e faziam um trilha que Adebisi seguia, pois adorava ver todos aqueles búzios ao alcance das mãos. Ficou imaginando quantos adornos poderia fazer com eles.

Tentou pegá-los com as mãos, mas eram muitos e, a cada passada, caíam ainda mais búzios. Adebisi desistiu de pegar as contas caídas no chão e preferiu ir até o “imóle” – só podia ser um – e perguntar onde ele havia encontrado tantos. A divindade nada respondeu, apenas ergueu para Adebisi a mão cheia de búzios.

– Não quero os teus búzios, – disse Adebisi ao “imóle” – prefiro que me diga onde os conseguiu para que eu mesmo possa buscá-los.

Então o “imóle” largou algumas contas nas mãos de Adebisi e desapareceu. Voltando à trilha notou que os búzios que o “imóle” deixara cair não se viam mais no chão. Adebisi acordou na barraca e viu que o Babalaô, Ferreiro, Tadeu, Giácomo e Roberto olhavam para ele.

– Sonhei com aquele deus de novo, Babalaô – a voz dele era de euforia. – Sonhei que ele deixava cair búzios pelo chão, mas só consegui pegar os que ele me deu. O que isso quer dizer? Todos em silêncio. Adebisi insistiu:

– Pode perguntar isso a Orunmilá?

Ferreiro, ainda surpreso, disse quase num sussurro:

– Adebisi, olhe para suas mãos.

Só então ele reparou: nelas estavam os búzios que o “imóle” havia lhe dado no sonho.


* * *

Roberto e Giácomo checavam suas terminators sob o olhar aparvalhado de Tadeu, que ainda não havia se acostumado com a idéia de andar armado. As crianças da aldeia ficavam em volta deles, curiosos.

– Será que teremos algum tiroteio? – Tadeu perguntou.

– Pode ser – respondeu Roberto enquanto guardava a terminator de volta no coldre – Nós estamos aqui somente como seguranças, pois o que tiver que ser feito ficará por conta do Comissário Franco e do tal Ferreiro.

– Notou uma coisa, Roberto? – perguntou Giácomo – Eu nunca vi esse tal de Franco pelos corredores da Empresa. Nunca mesmo. Pela maneira de agir parece ser bem experiente e já era para ao menos termos ouvido falar dele.

– Deixe de ser presunçoso, Giácomo! – disse Roberto – A Empresa tem filiais em todo CET, exceto nos Anos Interditos, por isso ninguém jamais conhecerá todo mundo, até porquê nunca foi calculado o número exato de funcionários. Tadeu achava a conversa dos dois irritante e tentava se distrair com a idéia de que estava em outra época.

Mas nada de interessante via ali, nem mesmo um personagem histórico relevante para mais tarde contar na Empresa que viu fulano ou sicrano. Giácomo reparou nas mulheres de peitos caídos e cheias de cabelos nos sovacos, sem falar do mau hálito, dos dentes quebrados e do cheiro de urina que impregnava as cabanas. Apenas poucas adolescentes exibiam seios firmes e um bumbum não tão grande, mais parecidos com as mulheres de seu tempo. Ao menos dessa vez se comportaria.

Roberto sabia um pouco mais: não era difícil deduzir que estava diante de um grave Ponto de Divergência, do qual surgiriam diversas LTs, por isso a missão de deter Akim e manter o CET para, mais uma vez, salvar o futuro e evitar uma nova LT. De qualquer maneira, aquele esquisito do Franco deveria ter as respostas.

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