domingo, 17 de abril de 2011

A Guerra dos Imoles, 4ª parte - uma noveleta de Roberval Barcelos

Os deuses do Nível 6 devem estar loucos

Adebisi nem quis ir para aldeia. Ficou vagando meio sem rumo na margem do rio entendendo cada vez menos à medida que aprendia mais. O Babalaô previa uma tragédia e ele estava no meio de tudo. Logo ele que nunca foi um grande caçador e era menor do que os guerreiros de sua tribo. Se pudesse, seria um guerreiro errante, a sair pelo mundo em busca de aventuras e riquezas. Também se pudesse, escolheria sua própria companheira em vez de conformar-se com a que lhe foi designada e viveria numa grande cabana, com muitas mulheres para servirlhe e protegido por muitos guerreiros que sairiam tomando terras em seu nome.

Mas nada era como sonhara um dia.

De repente, Adebisi sentiu-se tonto. Cambaleou até uma árvore na margem do rio e se apoiou no tronco. Em seguida, ouviu um barulho estranho vindo do rio e viu que lá no meio formou-se um redemoinho. Assustado, mas ainda tonto, apanhou sua lança e ficou esperando pelo que viria – ou veria. De dentro do redemoinho surgiu uma mulher nua, jovem, com seios firmes, que ficou totalmente em pé sobre a água. Adebisi pensou que havia enlouquecido. Pior, ficou excitado com a maravilhosa visão ou alucinação que parecia querer mostrar-se para ele.

A mulher sorriu e apontou para uma grande pedra na outra margem, sobre a qual Adebisi viu aquele homem com o corpo coberto de palha da cabeça aos pés – o mesmo que viu em seus sonhos. Fosse quem fosse, parecia olhar em sua direção e ergueu o braço, apontando-lhe o dedo indicador. Logo depois, ele e a mulher desapareceram.

Quando Adebisi ainda tentava entender o que vira, o chão tremeu. As aves revoaram e muitos animais pareciam enlouquecer. O rio ficou cada vez mais caudaloso enquanto sua mente era invadida por imagens de homens e mulheres negros como ele, mas totalmente diferentes, talvez mais altos ou mais fortes, que se dividiam entre as duas margens de um mesmo rio. A parte maior foi para a margem direita e a menor para esquerda, e estes começaram a destruir tudo enquanto os demais apenas olhavam. Adebisi reconheceu que entre os da margem direita estavam a mulher que vira no rio e o homem vestido de palha.

Havia outra coisa que, aterrorizado, Adebisi não pôde deixar de reparar: eram centenas de seres. Os do lado direito variavam quanto ao sexo, à idade, às roupas estranhas, às armas e os enfeites; enquanto aqueles à esquerda tinham em comum o fato de se cobrirem com folhas do dendezeiro desfiadas (“mariô”), fossem em forma de saias como também vestidos (para as mulheres), capas e saiões. Porém, eram os olhares que causavam arrepios.

Os da direita apenas o encaravam, uns com curiosidade, outros com simpatia e alguns com satisfação, mas os da esquerda eram francamente hostis. Alguns pareciam rosnar de tão aterradores. O que queriam estes? Não devia ter-se feito esta pergunta. Ao menos não na presença deles. Como numa resposta em forma de ameaça, apontaram para um céu enegrecido de onde caíam rochas incandescentes e relâmpagos, enquanto na terra dezenas de vulcões expeliam lava, línguas de fogo que queimavam a floresta e evaporavam a água de mares e rios.
Adebisi sentiu as pernas fraquejarem e desabou.

* * *

Um velho negro de cabelos brancos e olhar bondoso, que tocou-lhe de leve a face:
– Tava “drumindo”, mizinfio?

Adebisi não entendeu nada. Levantou-se assustado e reparou noutro homem negro e três brancos que vestiam estranhas roupas pretas. Cadê a maldita lança?

Ele já vira homens brancos antes. Eram mercadores vindos de terras distantes e que falavam de senhores numa terra mítica que reinavam como deuses e eram os donos das imensas riquezas do Grande Rio. Mas estes diante de si eram diferentes: cheiravam bem e eram altos. Seus dentes eram a coisa mais branca que já vira e se perguntou como eles fizeram para não os perderem. As roupas eram estranhas, mas viajantes usavam sempre roupas estranhas para seus olhos. O velho aproximou-se e perguntou em sua língua:

– Tua aldeia é muito longe?

– Não – respondeu Adebisi, como se pudesse confiar naqueles estranhos. Será que também traziam presentes?

– Leva a gente até lá? – insistiu o velho.

– Levo sim. – assentiu, sem saber se fazia a coisa certa.

* * *

Os aldeões acorreram novamente. Mais gente estranha havia chegado e talvez trouxessem presentes. Os líderes tribais se destacaram e foram ao encontro deles. Ferreiro destacou-se do grupo e saudou-os.

– Viemos em paz, – disse Ferreiro – queremos falar com o Babalaô.

Os velhos agiram como se estivessem confabulando e um deles fez o sinal para que Adebisi os levasse até a roça do Babalaô. Ao cruzar pela aldeia, cada um tirou suas impressões. Giácomo, salvo por algumas adolescentes, viu poucas mulheres de corpo, digamos, bonito e dentes ainda sadios, mas eram demasiado jovens para ele. No geral, predominavam as feias, desdentadas, banhudas e de peitos caídos.

Tadeu olhou ao redor e foi interpelado por Roberto, que comentou: – Mais primitivo do que pensei.

– Pode ser. – Tadeu fingiu concordar. – Você já reparou no que está faltando aqui?

Roberto olhou ao redor e opinou, irônico: – Televisores, computadores, máquinas de lavar e automóveis.

– Não foi o que eu quis dizer, mané. Se você olhar com calma, verá que não há nada de metal aqui, somente madeira e pedra. Ainda não desenvolveram a metalurgia. Roberto soltou um
muxoxo e pensou: ‘Viu só como são primitivos?’

Franco olhava ao redor pensativo. Como herdeiro da cultura africana devia sentir-se à vontade, mas não conseguia, pois o desenvolvimento de Palmares e o intercâmbio cultural fizeram dele um homem distante demais de seus ancestrais. Será que algum daqueles aldeões seria seu ascendente?

O deus se lembrou que fora batizado católico e só depois foi levado a um terreiro de Candomblé, embora não fosse esse o nome da religião em sua LT. Lá lhe foi dito que deveria ser confirmado Ogã e que era filho de Ogum, o poderoso e temperamental senhor do ferro e da guerra, que abre os caminhos e mata seus inimigos. Mas sua vida tomou outro rumo quando foi chamado para juntar-se à uma empresa que se expandia descontroladamente pelo CET e perigava destruir toda a Existência se não fosse logo disciplinada. Nunca se arrependeu de sua escolha, mas sabia o quanto isso pesava em sua alma e corroía sua mente. O poderoso Nível Seis agora estava numa aldeia há mil e oitocentos anos e contando com a ajuda de um homem que nunca viajara pelo tempo. Esse sujeito que ele mandara buscar para colocar a História do Homem em seu devido curso e impedir mais uma LT no já combalido CET. No momento, Ferreiro, que conversava com alguns anciãos, voltou e avisou: – Temos problemas: estão dizendo que outros homens tão estranhos quanto nós já estiveram aqui antes.

Franco soltou um muxoxo e disse:

– Akim e seus lacaios já chegaram.

Ferreiro olhou nos olhos do jovem Adebisi e sentiu algo totalmente estranho, mas nada ruim. Por sua vez, o jovem também sentia por Ferreiro uma estranha reverência, como um sinal de que poderia confiar nele.

Mas confiar o quê?

* * *

Akim voltou para o seu acampamento. Cobriu a cabeça com uma espécie de boné sem aba, o “iqueté”, de cor azul-marinho, e estava sentado diante de uma mesa sobre a qual havia uma cesta de palha trançada rodeada por uma vela acessa, um copo com água, um cristal e um incenso queimando. Ele fez uma rápida oração, segurou os búzios com as duas mãos, fez os pontos cardinais e jogou os búzios dentro da cesta. Era sua maneira de obter respostas sem o véu da dissimulação.

Estudou a posição em que caíram as peças e sorriu. Em seguida, tirou o fio de contas azul-marinho, enrolou-o na mão direita e beijou-o, dizendo a seguir:

– Quem diria, um sacerdote de Ifá mentindo. Que coisa mais feia, Babalaô!

E riu.

* * *

Os anciãos foram até a tenda. Estavam menos preocupados com a segurança da aldeia e desejosos de mais presentes, mas dessa vez não havia e ficaram decepcionados. O Babalaô apresentou Ferreiro como um sacerdote dos deuses e os outros como seus aprendizes.

– Os deuses estão vindo mesmo? – Um dos anciãos perguntou, causando grande constrangimento ao Babalaô, que já o havia predito.

– Ifá sabe – Ferreiro respondeu como se desagravasse o Babalaô – e viemos de muito longe para adora-los.

– E os “Igbá-imóles”? Eles pretendem nos destruir? – O ancião indagou como se visse na figura de Ferreiro um sacerdote. Ao menos ele se apresentou como um.

– Não é a mim que devem perguntar isso.

– Mas estamos perguntando. Orunmilá disse que os deuses da esquerda estão irados.

– Confiem sempre no Deus Supremo – “Olodumare” – e lembrem-se de que os deuses da direita, os “Irunimóles”, jamais nos deixarão à mercê de deuses irados.

Os anciãos se entreolharam:

– Precisamos saber se devemos mesmo adorar os deuses que não querem ser adorados. Se uma parte das divindades não nos quer tão próximos, então são os outros que devem fazer valer a sua vontade para se aproximarem e não esperarem que nós, que mal podemos nos defender uns dos outros, decidam qual será o próximo passo.

Ferreiro insistiu para que mantivessem a fé – em si mesmos e nos deuses – com argumentos tão bons que Franco sentia-se orgulhoso por estar acompanhado daquele homem tão sábio.

– Vocês são bem-vindos em nossa aldeia – disse outro dos anciãos – e saiba que queremos adorar os deuses para podermos viver melhor e aprendermos mais sobre os segredos do mundo.
Reiteraram as boas-vindas e respeitosamente se retiraram. Ferreiro sorriu satisfeito e naquele instante percebeu que subiu muitos pontos no conceito dos homens que o acompanhavam.

Continua.

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