segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Um Cara Decente: um conto de Osmarco Valladão

PHOENIX, ARIZONA
DEZEMBRO DE 1960

A entrada era um buraco de meio metro, espremido entre as lojas e o restaurante que ocupavam o térreo do prédio. A escada começava praticamente na calçada. Num quadro de avisos colocado à esquerda, além dos rabiscos habituais informando sobre os hábitos sexuais dos ocupantes, um cartão confirmava o endereço que eu procurava. Mas desta vez eu não precisei olhar.

A escada ensebada me deixou num corredor comprido, paralelo à rua lá embaixo. Caminhando para a esquerda, a porta que eu queria era a terceira, a que fica em frente a uma barata morta e tem um vidro fosco onde pode se ler, em letras que um dia foram douradas, "MILTON ARBOGAST - DETETIVE PARTICULAR".

O telefone do Sr. Arbogast, lá dentro do escritório, começou a tocar. Bem na hora. Eu sabia que o Sr. Arbogast não estava lá para atender. Eu tinha visto ele sair uns minutos antes para tomar uns drinques com um velho conhecido, um certo Sr. O'Malley, de Los Angeles. Eu era o sujeito do outro lado da rua, atrás de um jornal.

Do outro lado da linha, esperando o Sr. Arbogast atender, estava um texano rico e arrogante chamado Cassidy. Ele não era do tipo que esperaria muito por ninguém, muito menos por um detetive de segunda como Arbogast.

Saquei a pistola e atirei duas vezes na fechadura. Talvez isso atraísse algum curioso, mas um prédio daqueles habitualmente tem mais surdos do que curiosos. Atravessei a salinha de espera, abri a porta interna e alcancei o aparelho.

- Arbogast falando.

Segundo as informações que eu tinha conseguido, o tal Cassidy nunca tinha falado antes com Arbogast, mas eu não confiava inteiramente nas minhas fontes. Só podia esperar e torcer.

- Meu nome é Cassidy, Senhor Arbogast. Lowery me falou do senhor.

Peguei minhas anotações para poder dizer alguma coisa sobre o tal de Lowery que confirmasse que eu o conhecia. Era o que o tal Cassidy esperava, e pareceu ficar satisfeito.

- O senhor estaria disponível este final de semana para um trabalho fora da cidade? É um assunto urgente.

Eu havia acabado de salvar a vida de Arbogast.



Um camarada de branco apareceu na porta do escritório no momento em que eu limpava o telefone com meu lenço.

- T... Tudo bem? Eu pensei ter ouvido um tiro.

Levantei e dei uma olhada me volta. Tudo parecia no lugar. Me aproximei do sujeito de branco e mandei meu Sussurro Ameaçador Especial.

- E ouviu mesmo. Quer ouvir outro?

O homem ficou quase da cor da roupa. Moveu a boca, mas não conseguiu que nada saísse por ela. Passei por ele a caminho da porta, parando um instante para murmurar no seu ouvido.

- Isso não aconteceu.

Ele deve ter balançado a cabeça um milímetro, se tanto, mas por enquanto servia.
Saí do prédio e virei a primeira esquina que encontrei. Não podia me arriscar a encontrar Arbogast e O'Malley. Parei um táxi e pedi que me levasse ao endereço que Cassidy me deu. Julgando ter contratado Arbogast, ele não mandaria mais ninguém. Inventei um compromisso qualquer para convencê-lo a deixar o envelope, com as fotografias, na portaria do edifício onde sua companhia de petróleo ocupava um andar inteiro. Isso encerraria meus assuntos em Phoenix.

A tal de Crane parecia uma artista de cinema, e eu sei do que estou falando. Trabalhei em Hollywood por algum tempo. Devolvi as fotografias ao envelope e o envelope ao meu bolso. Tinha mais o que fazer no momento.

O próximo lance era em Fairvale, daqui a alguns dias. Pedi ao motorista do táxi que parasse assim que avistei um beco que me pareceu deserto o suficiente.

Assim que o táxi sumiu de vista, entrei no beco e me encolhi no vão de uma porta, de um jeito que eu não poderia ser visto nem da rua, nem das janelas acima. Peguei a caixa e o cartão.




Eu sabia que Fairvale era um buraco daqueles que na placa de entrada deveria estar escrito "desculpe" e não "bem-vindo". Alguns anos atrás tinha visto seus dias de glória, parasitando uma rodovia com postos de gasolina e motéis. Mas agora havia uma nova inter-estadual que passava longe da cidade, que assim havia perdido sua fonte habitual de renda, constituída de caminhoneiros e turistas de passagem. Provavelmente se tornaria rota de contrabando, com os postos de gasolina se associando a bordéis e os motéis se tornando esconderijos, se não acabasse antes. Mas ainda faltavam alguns anos para isso.

Por enquanto Fairvale simplesmente fazia de conta que nada estava acontecendo, e faria isso enquanto pudesse. As cidades são como as pessoas.

Eu não podia simplesmente aparecer num lugar desses sem um carro. Sentado numa pedra no deserto, longe da estrada, verifiquei um mapa e descobri uma revenda de carros usados algumas milhas antes da cidade.




Frank não tirava da cabeça a garota loura. Ela estava fugindo de alguma coisa, isso era certo. E não era nenhuma profissional, uma criminosa calejada não iria estar tão amendrontada daquele jeito. A garota estava tão angustiada que Frank teve medo dela ter um ataque bem ali na sua frente. Mas isso não era problema de Frank. Era para isso que os policiais recebiam seu salário, não os mecânicos. Os mecânicos recebiam para consertar automóveis ou, como no caso de Frank, examinar os carros que Charlie queria comprar. Como bom vendedor, Charlie farejou logo, no desespero e na ingenuidade da moça, a oportunidade de um bom negócio. Conseguiu uns trezentos dólares a mais na troca do carro dela por um dos seus.

Para ficar tudo perfeito, era só Charlie pôr uns números diferentes nos livros e eles poderiam ficar com algum e Charlie ainda receberia uns elogios do patrão pelo excelente negócio.

Só que aquele policial apareceu perguntando sobre a moça, e não gostou nem um pouco quando soube que Charlie não tinha verificado seus documentos. O filho da puta tinha chegado a insinuar que o alto valor do negócio era um tipo de suborno. E recolheu o dinheiro para verificar os números de série com o FBI. Claro que ele assinou um recibo e tudo mais, mas agora Charlie não poderia modificar o valor e teria sorte se não fosse demitido.

Isso tinha estragado toda a sua semana, e Charlie tinha descontado seu mau-humor em Frank. Toda noite Frank olhava com alívio o carro de Charlie se afastando, trancava tudo e voltava para a garrafa que o esperava no quarto, nos fundos da oficina, onde vivia em troca de também fazer o papel de vigia noturno. Normalmente ele se embebedava até dormir.

E foi essa a história que Frank contou para Charlie, no dia seguinte, e depois para o patrão e depois ainda para a polícia. Ela não explicava porque Charlie tinha encontrado Frank amarrado em seu quarto, trancado pelo lado de fora, e nem como um carro havia desaparecido.

Aliás, o carro sumido era o da moça loura.





FAIRVALE, ARIZONA
ALGUNS DIAS DEPOIS

O sujeito que eu procurava trabalhava num daqueles armazéns nos limites da cidade que tem de tudo para propriedades rurais, menos vacas.
Cercado de ferramentas e sacos de ração, suando no meu terno escuro e sentindo a serragem entrar pelas minhas narinas, pedi uma cerveja gelada para o garoto de macacão que me atendeu.

- Cerveja não tem.

- Então me dá qualquer coisa. Pode ser soro para veneno de cascavel, se estiver gelado.

Ele teve a audácia de perguntar se eu tinha sido mordido. A pequena Mary, a filha do pastor, ia ter que arrumar outro débil mental para passar as tardes de domingo tentando pegar nos seus peitos.

A entrada da moça salvou a vida dele. Como eu, ela estava vestida para a cidade, e não para aquele fim de mundo. Tinha mais gosto do que dinheiro, mas o conjunto funcionava. Mas não foi sua aparência que me fez prender a respiração, embora ela bem que merecesse. Tirando os cabelos, que tocavam os ombros, era moça da fotografia no meu bolso. A tal Crane.

O garoto olhava para ela indeciso entre um estupro e uma experiência mística. Fiquei imaginando o que é que eles chamavam de mulher por ali.

Ela sorriu para ele e perguntou por Sam Loomis. Achei que ele fosse desmaiar, mas se refez a tempo e gritou lá para dentro, para o Sam, que tinha uma dona procurando por ele.

O sujeito que saiu lá de dentro tinha a altura e os ombros de um jogador de futebol profissional. Usava jeans e botas de cowboy. Devia ser o sonho dourado das meninas locais. Fez uma expressão estranha quando olhou para a moça, mas só por um segundo, e depois sorriu.

- Pois não?

A moça suspirou e assumiu uma expressão decidida.

- Eu sou a irmã de Marion.

- É claro! Lila!

O sorriso de Sam ficou do tamanho de uma porta de garagem dupla. Parecia autêntico, mas a moça não estava disposta a amenidades sociais.

- Marion está aqui?

- É claro que não! Alguma coisa errada?

- Ela saiu de Phoenix na sexta-feira. Sem avisar a ninguém.Eu estava em Tucson para o final de semana, e ela não me deu nem um telefonema.

A moça juntou a coragem que ainda tinha e despejou, a voz ficando mais aguda à medida que falava.

- Sam, se vocês estão juntos nisso, não é da minha conta. Mas, por favor, me deixe perguntar a ela se está tudo bem ! Só isso, depois eu vou...

O garoto acompanhava os dois balançando a cabeça de lá para cá, como se estivesse assistindo uma partida de tênis. Sam notou e mandou que ele fosse almoçar.

- Não estou com fome, Sam.

- Bob?

- Sim?

- Almoço. Agora.

Sam me viu no canto do balcão, enquanto olhava o garoto sair. E não pareceu gostar. Lila enxugava os olhos com um lencinho.

- Desculpe... é que...

- Esqueça. Agora me diga o que aconteceu com Marion.

Hora de entrar em cena. Caminhei para os dois.

- Podemos todos falar de Marion?

Sam olhou para mim. Era o olhar que os romancistas costumam chamar de ameaçador. Não que fizesse alguma diferença.

- E você quem é, amigo?

- O'Malley. Mas todo mundo me chama de Lace. E não sou seu amigo.


Sam não gostou muito de minha intromissão, mas isso era problema dele. O meu era conseguir as informações que Lila Crane pudesse ter sobre a irmã. Não era muito. Marion tinha desaparecido com quarenta mil dólares que seu chefe, Lowery, tinha acabado de receber de Cassidy por uma casa. Ela deveria ter depositado o dinheiro no banco, mas simplesmente sumiu. Lowery telefonou para Lila, a única parente de Marion que ele conhecia. Lila, claro, não sabia de nada. Preocupada, resolveu procurar Sam.
Cassidy não acredita em Lila. Acha que Marion vai procurar a irmã. Contrata Arbogast para vigiar Lila.

Arbogast seguiu Marion até Fairvale e, provavelmente, foi assassinado aqui. Eu já havia conseguido impedir que ele viesse. Agora, faltava pegar o assassino.

Eu não precisei, como Arbogast teria feito, seguir Lila Crane. Já sabia que ela viria para cá, assim como também sabia que Marion veio antes dela. Mas preferi fingir que chegava à essa conclusão jnto com Lila e Sam.

- Marion deve ter vindo para cá, procurar Sam.

- Mas porque ela não chegou ainda?

- Ou aconteceu alguma coisa no caminho, ou ela está por aqui, num desses motéis da
estrada velha.

Sam não se convencia.

- Escondida? Mas por quê?

- Vamos encontrar ela primeiro. Depois nós perguntamos.

Dei a sugestão de percorrer os motéis, perguntando e mostrando a fotografia. Lila e Sam deviam ficar ali, para o caso de Marion aparecer. Lila queria avisar à polícia.

- O homem que me contratou quer apenas o dinheiro. Se eu levá-lo de volta, ele esquece o assunto. Mas se a polícia for envolvida, Marion vai para a cadeia por roubo. É melhor vocês me deixarem resolver isso do meu jeito. Eu prometo manter vocês informados.

Lila parecia alguém que teve que escolher entre morrer ou cortar a própria perna, mas ficou quieta. Sam insistiu em vir junto comigo, em dividir os motéis para ir mais rápido, etc. Chegou a ir ao escritório pegar uma foto de Marion.

De volta do escritório, com a foto na mão, Sam parou de repente e franziu as sombrancelhas. Acompanhei o seu olhar, que saía pela janela. Não vi nada de extraordinário além da cidade e do carro que eu tinha roubado. Perguntei a ele o que estava havendo.

Sam olhou para mim e, num gesto bem rápido e fluido, tirou das costas um revólver 45.

- É melhor você contar sua história de novo, amigo. E dessa vez explique o que é que você está fazendo no carro de Marion.

Lila levantou, olhou, e também virou-se para mim com uma expressão diferente. Bem diferente. Sam apontou para o telefone com a mão que segurava a foto. A outra, a da arma, mantinha-se firme na direçao da minha barriga.

- Lila. Peça à telefonista para chamar Al Chambers.

Al Chambers é o xerife, mas isso era outra coisa que eles não precisavam saber que eu já sabia. Enfiei a mão no paletó e, imediatamente, ouvi a arma de Sam ser engatilhada.

- É só um maço de cigarros, Roy Rogers. Se estivesse pegando minha arma, você já estaria caído no chão.

- Ah, é? E porque você não tenta?

Pois eu ia mesmo fazer isso, mas a porta abriu-se e dois homens entraram, um grande e um pequeno. Quer dizer, o pequeno não era pequeno, era um cara de altura normal. Parecia pequeno por estar ao lado do outro, que era gigantesco.
Se tinham visto a arma na mão de Sam, não demonstraram. O menor, moreno como um índio, parou a uns poucos passos da porta, e ficou por ali. O gigante, que tinha uns olhos bovinos, de pálpebras pesadas, caminhou até perto de nós. Olhou para mim, para Lila, para Sam e para a arma na mão dele. Por fim abriu a boca, mas dirigindo-se ao moreno lá atrás.

- Ei, não é que o Billy the Kid pegou ele para nós?

- Lace deve estar ficando velho.

Sam estava meio vermelho, acho que de raiva.

- E quem são vocês dois?

- Agentes federais. Deixe eu mostrar meu distintivo.

Meteu calamamente a mão no paletó e retirou uma enorme pistola preto-azulada, que apontou para o espaço entre os olhos arregalados de Sam.
Marion deu um gritinho. O moreno sacou uma pistola igual e fez, encostando o cano nos lábios, o sinal de silêncio. Sam engasgou um pouco até achar as palavras. É normal. Se um dia você tiver uma Terminator apontada para seu rosto, sua reação será a mesma. Os rapazes que a desenharam tinham isso em mente.

- O que... que é que vocês querem?

- A sua arma, para começar.



Uns dez minutos depois, uma radio-patrulha encostou em frente ao armazém. Al Chambers desembarcou seus quase cem quilos, ajeitou o chapéu e entrou.
Sam estava no balcão, folheando uns catálogos. Suava um bocado, mas Al não deu muita atenção a isso.

- E então, Sam, qual é o problema?

- Oh... Olá, Al. Eu estava distraído. Problema? De que problema você está falando?

- Uma mulher ligou pedindo que eu viesse para cá. O que está havendo?
Sam deu um sorriso.

- Acho que alguém fez uma brincadeira com você, Al. A telefonista não rconheceu a voz?

- Não... pelo menos ela não me disse. Vou perguntar a ela. Por aqui está tudo bem, então?

- Tudo normal, que eu saiba.

- Tem certeza, Sam?

- Claro que tenho, Al, por quê? Algo parece errado para você?

- Bom, para falar francamente, Sam, você parece meio nervoso.

- É esse maldito calor. E os negócios não vão muito bem...

- É, eu sei. É essa estrada nova. Bem, eu já vou indo. Vou ver se descubro quem foi o engraçadinho. A telefonista disse que foi uma moça que ligou. Aposto que foi aquela garota Sanders. Até logo, Sam.

- Até logo, Al.



Ouvi tudo com o ouvido colado na porta do escritório de Sam, bem atrás daonde ele estava. Dali podia atravessar a porta, as costas de Sam e o peito do xerife com um tiro só. E deixei isso bem claro para Sam antes de entrar no escritório com Reno, Thaler e Lila Crane.

Livres de Chambers, pelo menos por enquanto, mandei Sam fechar a porta do armazém e pendurar o aviso de almoço. Depois amarramos os dois e saímos do escritório. Reno procurou e achou uma garrafa de whiskey. De centeio, mas tudo bem. Bebemos passando a garrafa de mão em mão.

- E então, o que é que vocês estão fazendo aqui?

Reno e Thaler se entreolharam. O assunto devia ser difícil, embora eu já fizesse uma boa idéia do que seria. Thaler ficou com o problema.

- Mandaram a gente levar você de volta, Lace.

- Só isso?

- Se você está perguntando se eles acrescentaram o "vivo ou morto", você sabe que sim. Mesmo quando não dizem claramente.

- E daí?

- E daí que, como sempre, não é para fazer perguntas, mas eu e Reno decidimos saber o que é que está acontecendo antes de agir. Agora é com você.
Me acomodei melhor e acendi um cigarro.


Um dia, muito tempo atrás, eu conheci um cara decente. Daquele tipo que você não sabe o que está fazendo num trabalho como o de detetive particular, já que não pega divórcios, não faz o papel de achacador e nem de guarda-costas. O nome do cara era Milton Arbogast. Ele tinha uma salinha em Phoenix, e eu tive que procurá-lo uma vez para me ajudar com um probleminha de um dos clientes de Rudy. Resolvemos o problema, bebemos juntos, fomos com a cara um do outro e só.

Alguns dias atrás eu estava procurando alguma coisa nos arquivos da Intempol de 1960, quando passei por uma notícia que falava de Arbogast. Ele aparentemente era uma das vítimas de um assassino serial que tinha sido apanhado numa cidade chamada Fairvale.

A história era a seguinte: uma certa Marion Crane tinha fugido com quarenta mil dólares de seu chefe. Alguém imaginou que Marion talvez procurasse a irmã, Lila Crane, e puseram Arbogast na cola dela. Só que a tal Marion tinha um amante, um certo Sam Loomis, gerente de um armazém em Fairvale. Lila imaginou que Marion pudesse ter ido se encontrar com ele e foi procurá-lo, com Arbogast atrás.

Em Fairvale, Arbogast se apresentou a Lila e Sam, e sugeriu percorrer os motéis da região. Lila e Sam esperariam no armazém, para o caso de Marion aparecer. Arbogast ligou umas horas depois, contando que havia encontrado uma pista. Segundo o depoimento de Lila, parece que o dono do hotel teria confirmado para Arbogast que Marion passara a noite lá, mas no dia seguinte, logo cedo, voltara para Phoenix.
Arbogast também disse que esse sujeito tinha uma mãe idosa e paralítica, que ele viu numa janela da casa, atrás do hotel. O sujeito do hotel não deixou que Arbogast falasse com a velha, mas ele iria tentar falar com ela assim mesmo.

E essa foi a última vez que se ouviu falar de Milton Arbogast.
Investigando por conta própria, Lila e Sam resolveram se hospedar nesse motel como marido e mulher. Enquanto Sam distraía o proprietário, Lila foi até a casa tentar falar com a velha.

É aí é que a história fica divertida. Lila encontra a velha no porão, só que morta e embalsamada. Nesse instante surge o filho, o dono do motel, vestido com roupas da velha e com uma faca na mão. Por sorte, Sam surgiu logo atrás e conseguiu agarrá-lo.

A investigação mostrou que o sujeito era o responsável por um respeitável número de desaparecimentes na região, principalmente de mulheres. O sujeito era uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Parece que quando ele se sentia atraído por alguma moça, a personalidade de sua mãe morta assumia o controle e, num acesso de ciúmes, matava a coitada. Os corpos e os pertences das vítimas ele colocava em seus carros e jogava num pântano atrás da casa.



Thaler deu um assovio curto.

- Que história! Já pensou em vender para o cinema? Mas onde é que você entra nisso?

- Milton Arbogast. Acho que um cara decente como ele não merece morrer desse jeito. Um assassino de vestido e peruca, pelo amor de Deus!

- E você tem certeza de que ele foi morto mesmo? Ele não poderia ter encontrado o dinheiro e sumido?

- Até aonde eu descobri, não tinham encontrado seu carro ou seu corpo no pântano, mas era dado como certo que ele era uma das vítimas.
Thaler deu sua risada baixa, sinistra nos momentos apropriados.

- Lealdade a um cara praticamente desconhecido, só porque resolveu que ele é um sujeito decente. Eu acho que você perdeu o juízo de vez, Lace, se é que um dia teve algum. O que é que você acha, Reno?
Reno balançou os ombros.

- Ajudamos Lace a terminar com isso, e depois resolvemos. Ou então atiramos nele agora mesmo.

- Concordo. E qual é o próximo passo, Lace?

- O complexo, como sempre, não é o trabalho em si, mas causar o mínimo de danos à linha temporal. Por isso vim até aqui no lugar de Arbogast e tentei evitar queLila ou Sam fizessem algo precipitado ou chamassem a polícia antes da hora.

- Mas se você já salvou Arbogast, porque continuar?

- Arbogast foi o último que ele matou. Não podemos deixar que ele mate mais ninguém. Você sabe como é, se ele matar a pessoa errada... pelo mesmo motivo, infelizmente, não podemos salvar ninguém que ele matou antes.

- Mas você salvou o tal de Arbogast!

- Já verifiquei as consequências disso.

- Você é quem sabe.E os dois ali dentro?

- Eles vêm com a gente. Vocês trouxeram algemas, não?


Assim que nos afastamos da cidade, fiz sinal para Thaler, que vinha em outro carro, e parei. Virei-me para Sam e Lila no banco de trás.

- Muito bem. Provavelmente Marion está morta, é melhor que vocês saibam logo. Lamento. O assassino também matou um amigo meu, e nós estamos indo pegá-lo. Quanto a quem somos e coisas assim, esqueçam. Sam, essa é para você. Essa pistola pode arrancar a perna de um homem a cinquenta metros, e uma pancada com a coronha pode mandar seus dentes da frente garganta abaixo. Fui claro? Lila, eu não teria a coragem de ameaçar você, mas arranco os dentes dele se eu ouvir um grito, OK? Alguma pergunta?

Lila tinha os olhos cheios de lágrimas, mas me encarava com firmeza. Grande menina.

- Para onde nós estamos indo?

- Para o lugar onde sua irmã se hospedou e provavelmente foi assassinada.

- E que lugar é esse?

- Um motel na estrada velha. Bates Motel.

Liguei o carro e continuamos. Andamos mais uns cinco minutos antes de Sam falar.

- Você está dizendo que aquele pobre coitado do Norman Bates...

- Você o conhece?

- Pessoalmente, não. Só o que eu ouvi falar...

- E o que foi que você ouviu falar?

- Bom, a mãe dele não era exatamente a nora que nossa mãe gostaria...

- Tudo bem, em respeito a Lilia, vamos dizer apenas que ela gostava de se divertir. E daí?

- Parece que um de seus namorados convenceu-a a abrir o motel, e depois sumiu. Ela criou o garoto sozinha, mas de vez em quando aparecia nos bares, bêbada, e sempre saía com alguém.

- Que ambiente familiar! E o que mais?

- Ninguém gostava muito dela. Dizem que tinha um temperamento horrível. Alguns dizem que ela era louca, e até que, bem, quando ela não conseguia arranjar ninguém...
Lila virou a cabeça para estrada.

- Que horror!

Eu já não tenho esses pudores há muito tempo.

- Sobrava para o garoto. Já ouvi essa história antes. Não costuma ter um final feliz.

- E não teve mesmo. Apareceu um sujeito que acabou indo morar lá. Quero dizer, como se fosse marido de verdade. Mas ela soube depois que ele era casado. Uma certa manhã os dois apareceram envenenados. Cianeto, eu acho.

Fiz uma careta. Veneno é a maneira de morrer que mais me assusta.

- E o pequeno Norman?

- Ele que encontrou os corpos. Acho que o mandaram para um orfanato, sei lá. Sumiu por muitos anos. Um dia voltou e reabriu o motel, mas com a estrada nova ...

- Quarenta mil dólares podiam ajudar um bocado...

Sam não respondeu. Acho que foi em consideração a Lila. Bom garoto, um verdadeiro cavalheiro, como todos os bons gigolôs. Marion teria muito a contar sobre você, garoto, mas isso não é da minha conta.


O Bates Motel era constituído de duas fileiras de chalés pré-fabricados, fazendo um "L", igual à milhares de outros por aí. O que realmente se destacava era a enorme casa vitoriana atrás do escritório. Além de alta, ainda ficava sobre uma colina, dominando toda a paisagem ao redor.

Não sou do tipo que crê em lugares amaldiçoados ou assombrados. Para mim, essa sensação é o resultado, sobre espíritos impressionáveis, da feiúra e da decadência. E aquele lugar tinha bastante dos dois.

Virei para o banco de trás e olhei mais uma vez para os rostos de Lila e Sam.

- Agora é com vocês, crianças.



Sam era fisicamente bem maior que Norman Bates, mas mesmo assim estava assustado. Não há homem são que não tenha medo da loucura, e a loucura de Norman se tornava mais nítida a cada frase, no tom de sua voz e na expressão de seus olhos.

- Cale a boca!

Sam continuava recostado no batente da porta do escritório, impedindo a saída. Tentava manter a voz controlada, mas era difícil. Cada vez que pensava em Marion...

- Quarenta mil dólares é um monte de dinheiro... eu acho que sua mãe sabe aonde ele está e o que você fez para consegui-lo. E eu acho que ela vai nos contar.
Norman olhou em volta, apavorado.

- A garota! Onde está a garota que veio com você?

Sam viu que Norman estava inteiramente descontrolado. A qualquer momento atacaria. Deslizou a mão disfarçadamente até às costas, onde o revólver metia-se no cós das calças jeans.

Mas antes mesmo de fechar os dedos na coronha, Norman saltou sobre ele.

- Aonde está ela?

Norman atacava às cegas, arranhando, golpeando sem olhar aonde, como uma crança. Rolaram no chão. Por reflexo, Sam cruzou os antebraços na frente do rosto, defendendo os olhos. Também às cegas, golpeou para frente. O peso de Norman saiu de cima dele.

Sam tentou sacar a arma, mas algo explodiu na sua cabeça, como um flash de fotografia espocando atrás dos globos oculares.
Sem sentidos, Sam rolou pelo piso do escritório. Norman, ofegante, largou resto do vaso de cerâmica que ainda estava na sua mão e pegou o revólver nas costas de Sam.


Na quase escuridão do porão, Lila deu alguns passos até que suas mãos encontrassem a outra porta, a da dispensa. Segundo O'Malley, era ali que estaria a velha. Lila respirou fundo e abriu a porta.

Uma lâmpada empoeirada pendia de um fio, iluminando um círculo de caixotes e um chão de tábuas sujas. Quase no limite do círculo, Lila viu uma cadeira de rodas e as costas de um vestido.

O silêncio era absoluto. Lila pensou se não deveria estar ouvindo a respiração da velha. Avançou mais um passo, começando a estender a mão. Talvez a senhora estivesse dormindo, era melhor não assustá-la. Um toque de leve no ombro, uma palavra sussurrada...

- Senhora Bates?

A mão, surgindo de repente sobre os lábios de Lila, abafou o grito e puxou-a para trás. O sussurro, bem perto de seu ouvido, cheirava a bebida.

- Calma... sou eu, Thaler. Ele já está vindo para cá.

- Q...quem?

- Bates.


A porta escancarou-se de repente, e alguém avançou para o interior da dispensa. Uma figura patética, tropeçando num longo vestido, com uma peruca grisalha mal colocada sobre a cabeça. Saí do meu canto, com a arma ainda no coldre. Posso cuidar de uma faca, se o sujeito não for um virtuose como Thaler.

- Acabou, Norman.

Aí algumas coisas aconteceram simultâneamente. Ouvi Thaler gritando algo sobre uma arma. Senti alguma coisa me empurrar, e se não foi um rinoceronte, foi Reno Stalker. Bati contra a parede ouvindo tiros. Sentado no chão, rodei e saquei a minha arma.
Alguém, provavelmente eu mesmo, tinha batido na lâmpada, que balançava para lá e para cá, as sombras dançando. Vi de relance a luz iluminar o rosto da velha na cadeira de rodas, os dentes expostos e os buracos das órbitas.

- Thaler! Reno!

- Lace!

- Thaler! E a garota?

- Tudo bem, cadê Reno?

- Sei lá! Fique aqui com a garota!

Saí do porão. A passagem por baixo da escada levava à sala. Onde o filho da puta arrumou um revólver? Do imbecil do Sam, no mínimo. A porta da sala estava fechada. Comecei a andar para o meio da sala, de costas, mantendo a escada e o segundo andar na linha de tiro.

Reno estava quase no alto da escada, colado na parde. Sangrava de algum lugar entre o ombro e o lado direito do peito. Apontou para o alto da escada e subiu mais um degrau.

Fiz mira na porta no alto da escada e esperei. Reno subiu mais um degrau.
E mais um. Agora já estava com um pé no corredor do segundo andar. O próximo passo iria deixá-lo de costas para mim, tapando a visão do corredor.

Arriscado demais.

- Reno!

Reno virou-se para mim. Um vulto surgiu no corredor, bem atrás dele. Abri fogo. As balas passaram num espaço de uns dez centímetros entre a cabeça de Reno e o batente da porta. Reno se jogou no chão, apontando a arma. Eu subi correndo as escadas.
A peruca grisalha tinha rolado para o lado. Bates estava deitado no corredor, tremendo.

Chutei a faca para longe. O revólver encontramos depois, descarregado.



Recolhi as minhas credenciais da Agência de Segurança Nacional (falsas, claro) da mesa de Al Chambers. O xerife coçou a cabeça loura, de cabelos à escovinha.

- E o que é que eu faço com essa confusão toda?

Acendi o terceiro ou quarto cigarro. Estava fazendo o possível para sair de lá sem ter que matar ninguém, mas estava ficando sem paciência.

- Fique com os créditos, ponha no relatório que Sam agarrou Bates e segurou-o até que você chegasse, qualquer coisa! O importante é que você entenda que, em nenhuma hipótese, eu ou meus homens podemos aparecer. Nem nos seus relatórios, nem para a imprensa.

- Mas isto não está certo.

- Chambers, eu estou tentando salvar a sua vida, acredite. Nós somos os homens de preto, aqueles que somem com pessoas, que as levam para salas com luzes fortes. Já ouviu falar no arquivo X?

- Ok, eu topo. Farei como você diz.
Levantei da cadeira e ajeitei meus óculos escuros. Estava com eles desde que Chambers chegara no motel.

- E a segunda parte?

Chambers concordou com a cabeça. Virei-me a saí, acompanhado de Thaler e Reno, que já tinha sido liberado pelo médico. A bala de Bates tinha atravessado o ombro, mas sem afetar nenhuma artéria.

Do lado de fora da delegacia, Sam e Lila me esperavam.

- Bem, é hora do adeus. Lamento por Marion, e obrigado pela ajuda de vocês. E não se esqueçam do nosso acordo.

Sam se adiantou a apertou minha mão.

- Pode deixar. Vocês nunca estiveram aqui.


PHOENIX, ARIZONA
DEZEMBRO DE 1960


Milton Arbogast lia a página de esportes, quando ouviu a campainha que anunciava a porta da frente sendo aberta. Tirou os pés do tampo da escrivaninha e estava abrindo a gaveta para esconder o jornal e o copo de whiskey, quando a voz gritou da saleta de espera.

- Não precisa fingir que é um detetive sério, eu conheço o canalha que você é, Milt.
Arbogast abriu a porta e olhou para a figura de terno escuro que ocupava sua saleta.

- Lace O'Malley!

Abraçaram-se com genuína satisfação. Arbogast abriu a porta do escritório e fez sinal para O'Malley entrar.

- Venha, tem uma garrafa escondida aqui em algum lugar!

O irlandês sacudiu a cabeça.

- De jeito nenhum. Vamos sair e arranjar alguma coisa feita de malte, e não essa serragem destilada.

Apanhou um chapéu e meteu-o na cabeça de Arbogast.

- Espere aí, eu estou no meu horário de trabalho! E se o telefone tocar?

- Se tocar, será para ganhar uns poucos dólares sujos. A companhia de um irlandês vale mais do que isso. Vamos.

E praticamente empurrou Arbogast porta afora. Na calçada, O'Malley procurou disfarçadamente por um par de calças iguais ao que usava. Encontrou-o atrás de um jornal, encostado num poste. Cinco minutos depois já estavam confortavelmente instalados em frente a um malte quase puro. Arbogast notou a mala que Lace carregava.

- O que é isso?

O'Malley mudou de expressão. Virou o resto do copo e se aproximou de Arbogast.

- Lembra daquela história que nós resolvemos para Rudy?
Arbogast conhecia O'Malley o suficiente para saber que o assunto tinha se tornado sério. Mortalmente sério, talvez.

- Claro.

- Pois é. A coisa se complicou. Aquele cara que nós apagamos...

- Que você apagou. Eu nunca matei ninguém em toda a minha vida.

- OK, eu apaguei. Mas o pessoal do sindicato não está interessado nesses detalhes. Eles sabem que nós estávamos juntos, e só o que eles precisam.

- Sindicato, que sindicato?

- Aquele mesmo que você está pensando.

Foi a vez de Arbogast virar o copo.

- Merda! Aquele cara era do sindicato?

- Sobrinho ou afilhado de algum capo. E você sabe como esses caras são com essas coisas de família.

- E o que é que nós vamos fazer?

- Eu conversei com o Rudy e ele concordou que você é o menos culpado nessa história toda. Ele mandou isso para ajudar.

Arbogast sentiu a mala ser empurrada contra sua perna.

- E o que é isso?

- Quarenta mil pacotinhos. Para ajudar na sua aposentadoria precoce.

- Q...Qua...

- Agora, se eu fosse você, pensava em aproveitar esse dinheiro no México, ou no Rio de Janeiro...


No escritório fechado, o telefone de Arbogast começou a tocar.

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